Agricultura e indústria alimentícia parecem ter pouco em comum com a arquitetura, mas é justamente a sobreposição destas três áreas que interessa à cientista e arquiteta filipino-ganesa Mae-ling Lokko, fundadora da Willow Technologies, com sede em Acra, capital do Gana. Trabalhando com reciclagem de resíduos agrícolas e materiais biopoliméricos, Lokko busca meios de transformar o chamado agrowaste em materiais construtivos.
Dentre seus trabalhos de maior abrangência, detaca-se a pesquisa com a indústria do coco em Gana. Nela, Lokko investiga como o subproduto dessa cadeia produtiva — a casca do coco—, associado a determinados fungos e micélios, serve de substrato para a produção de painéis de baixa densidade que podem atender à indústria da arquitetura e construção como alternativas de isolamento térmico e acústico.
Por sua natureza transdisciplinar e inovadora, o trabalho de Lokko tem ganhado notoriedade em todo o mundo. Em 2019, a arquiteta ficou entre as finalistas do Hublot Design Prize e suas pesquisas já foram indicadas ao Visible Award 2019 e ao Royal Academy Dorfman Award 2020. Tivemos a oportunidade de conversar com Lokko sobre reciclagem, resíduos, alimentação e como essas áreas estão ligadas à indústria da arquitetura.
Romullo Baratto (ArchDaily): Poderia começar compartilhando sua experiência pessoal em Gana, nas fazendas de coco, e os resíduos que elas produzem?
Mae-ling Lokko: Recentemente houve um boom de coco em Gana. Propagandeado como uma bebida saudável e também como base para produtos cosméticos, o coco agora é uma onda e em todos os bairros daqui encontramos pilhas dele. Nesse contexto, comecei a pensar em como os vendedores poderiam se beneficiar e ganhar dinheiro com esse mercado e a enorme quantidade de resíduos gerada por ele.
Tudo começou com a casca de coco e os comerciantes, e à medida que me aprofundava nessa investigação, fiz amizade com um vendedor que compartilhou detalhes de suas operações. Fui visitar sua família e sua fazenda na região leste do país — uma produção em pequena escala, mas com uma grande rede de pessoas que levavam o coco para a cidade duas ou três vezes por semana. Esse foi meu primeiro contato com uma fazenda de coco. Mas não é nessa região que se concentra a maior parte da produção. No oeste, perto da costa atlântica, é onde se cultiva o coco em grandes plantações. São dois sistemas paralelos, um produzindo para exportação e outro em menor escala que provê água de coco para as cidades.
Meu primeiro interesse foi nos pequenos agricultores e o resíduo – ou seja, a casca – produzido por essa indústria, que não é centralizada, mas está em todo o país, o que a torna interessante para a pequena indústria de biomateriais que pode se aproveitar dessa disponibilidade distribuída para criar materiais construtivos mais sustentáveis.
RB: Mas o reaproveitamento da casca poderia ser implementado em larga escala também?
ML: Sim! É ainda mais fácil coletar a casca e controlar sua qualidade quando ela não foi contaminada, jogada na estrada ou exposta à chuva. Temos mais controle quando trabalhamos com cooperativas de produtores de coco de grande porte, além de uma coleta muito mais ágil dos resíduos.
RB: A primeira coisa que me vem à cabeça quando penso nesse processo é como é incrível reaproveitar as cascas de coco. Mas surgem algumas questões. Quais são os subprodutos dessa nova indústria, ou quais são os resíduos deixados para trás após o reaproveitamento dos resíduos agrícolas? Compensa em termos de consumo energético? Ou ainda é apenas uma aposta?
ML: Do ponto de vista energético, sabemos que painéis de fibra ou painéis de partículas feitos de bioadesivos e resíduos agrícolas — casca de coco, micélio etc.— realmente derretem e se desintegram em temperaturas e pressões mais baixas do que madeira compensada ou placas de fibra de média densidade. Mas a energia incorporada é ainda muito menor por causa das colas que estamos usando.
O interessante da casca do coco é que de sua quebra obtemos as fibras e uma substância em pó chamada medula, muito utilizada para hidroponia como substituto do solo. Na metade da temperatura e em pressão um pouco menor do que a necessária para a madeira compensada, a medula derrete e se transforma em uma cola muito resistente. Na verdade, essa biocola pode produzir painéis de fibra de alta densidade com resistência similar a do carvalho. Então, em termos de energia incorporada, há muitos prós no processo de prensagem desse resíduo agrícola.
Por outro lado, as coisas podem ficar um pouco mais difíceis quando falamos do ciclo de vida e das emissões resultantes da coleta dos resíduos e distribuição. Ter algum controle sobre onde os resíduos são produzidos pode reduzir os custos de energia no transporte. Além disso, se o resíduo for exposto ao tempo e molhar, é preciso gastar energia desidratando a casca. Você pode fazer isso ao ar livre, mas sem tanto rigor. É por isso que o preço final é tão influenciado pelo gasto no controle de qualidade dos resíduos. É aí que, em termos de energia e custos, essa tecnologia sempre foi bastante cara. Isso ainda é um desafio.
Em relação aos subprodutos, não há muitos. Nos painéis de coco estamos usando o pó e as fibras — isso é tudo que você precisa para a produção. Obtemos um material de construção que praticamente dispensa qualquer aglutinante. Se considerarmos outros bioadesivos para protegê-lo contra chuva ou fogo, pode ser que existam alguns subprodutos, mas nada que inviabilize o material.
Indo além na sua pergunta, venho trabalhando com tratamento de água com resíduos agrícolas e uma das plantas que usamos se chama Moringa, muito popular para chás e suplementos, semelhante à Spirulina. Um de seus subprodutos é uma espécie de pó que é muito útil no tratamento de águas tóxicas oriundas da indústria têxtil. Esse pó aglutina todas as substâncias tóxicas e as leva para o leito. O lodo resultante, por sua vez, é mais um subproduto com muitos metais pesados e outras coisas indesejáveis, e estamos explorando seu uso na fabricação de tijolos.
Temos que repensar o que estamos usando desde o início. Se você pretende acumular todos esses metais tóxicos em um produto químico, em algum momento do ciclo de vida eles vão aparecer novamente. Resíduos agrícolas servem como um poderoso agente para capturá-los e ligá-los, mas esse não é o problema: o problema está lá atrás, quando começamos a usar produtos químicos pesados.
RB: É muito bom ver esses subprodutos sendo reutilizados, transformados em novos materiais, e essas tendências de reciclagem e upcycling em todo o mundo. Mas se considerarmos toda a cadeia produtiva e seu impacto, percebemos que devemos começar a pensar nessas questões na fase de projeto. E isso é mais amplo que a arquitetura, abrange toda a sociedade...
ML: Pela natureza da minha pesquisa, situada entre agricultura, alimentação e arquitetura, quando penso em projetar um material, começo muito antes. Quando trabalhei com o coco percebi que o início de tudo é o fruto crescendo na árvore, em um clima muito específico; é aí que começa todo o condicionamento para as propriedades do material.
Meu trabalho nos próximos anos se concentrará no que significa projetar um material construtivo que não tem como objetivo apenas a fase de construção. E se o objetivo for descobrir como o edifício retorna ao solo?
Estamos passando por uma crise tão grande, que a maior parte do que produzimos é completamente incompatível com os sistemas químicos e biológicos presentes na terra, e é por isso que as coisas demoram muito para se decompor e retornar ao solo. Estas condições não estão separadas do desempenho do edifício. O ciclo de vida da arquitetura deve abranger tanto o modo como nossos edifícios empregam os materiais, quanto a forma como o meio ambiente lida com esses materiais depois. Mas isso é um grande desafio, temos que entender muito melhor o que acontece, do que é feito o nosso solo, o que há em nossos materiais. Essa é uma mudança de paradigma, e não espero que isso aconteça tão cedo.
RB: Que tipo de produtos podemos produzir agora, com as tecnologias atuais, para atender à indústria da arquitetura e construção?
ML: Materiais de isolamento de menor densidade já são uma realidade. Na verdade, cheguei tarde na onda dos produtos de isolamento feitos a partir de resíduos biológicos e fungos. Nos edifícios, os painéis acústicos feitos de subprodutos agrícolas e micélio são provavelmente uma das áreas mais promissoras, pois as pessoas pagam por elementos acústicos que ficam à vista. Além disso, há um alto grau de personalização nesses materiais. Em termos de custo, você gasta relativamente menos por área de material se comparado aos produtos que costumamos encontrar no mercado. Por outro lado, ninguém quer pagar muito pelo isolamento escondido atrás da parede, então é realmente preciso reduzir seu custo de produção — algo que pode ser alcançado com colaborações em larga escala com produtores rurais.
Os painéis de fibra de média densidade estão se popularizando e há várias empresas produzindo painéis de biocompósito prensados. Obviamente, trata-se de um processo energeticamente mais intenso quando aplicamos calor e pressão. A competição também é acirrada. Se você concorre com outras marcas e fabricantes de painéis de fibra e compensados de média densidade, sua faixa de preço é estreita. Além disso, suas opções de personalização geralmente não são tão amplas em termos de cores, texturas e impermeabilização. Seu material tenderá a ser mais caro e será visto mais como um produto de luxo feito sob medida.
Os materiais de alta densidade, por sua vez, são realmente difíceis porque você precisa obter fibras fortes, de alta qualidade e colas muito resilientes. Depende também da qualidade dos subprodutos, porque são todos diferentes — e é justamente essa a beleza dos resíduos agrícolas: assim como o alimento, eles mudam de lugar para lugar dependendo das características do solo e do ar, tornando-se únicos e profundamente enraizados naquela geografia específica.
RB: Parece ter muito a ver com a indústria alimentícia, já que a mesma fruta — o coco — cultivada no Brasil e em Gana, por exemplo, apresenta características químicas muito diferentes.
ML: Sim, e também tem muito a ver com a sazonalidade. Diferentemente da monocultura, onde você tem milho ou soja dominando a paisagem durante todo o ano, ao trabalhar com resíduos agrícolas de pequena escala, sabemos que na época das chuvas teremos muito disso ou daquilo, o que resultará em materiais construtivos únicos disponíveis sazonalmente.
Além disso, para que sua cadeia de produção resista ao clima em momentos críticos, você não pode depender muito de uma única cultura, caso contrário, isso aniquilaria várias outras espécies. E quando as pragas atacam a plantação, toda a indústria é ameaçada — algo que já aconteceu com a indústria do coco no passado. A monocultura oferece muitas lições que inspiram um modelo diferente de alimentação, consumo e produção a partir de resíduos agrícolas.
RB: É um pensamento realmente holístico. Não se trata apenas de alimentos ou da indústria da construção, é basicamente a vida no planeta.
Você tem alguma experiência ou já ouviu falar sobre as diferenças entre os resíduos agrícolas de alimentos transgênicos e não transgênicos? Talvez os subprodutos dos alimentos orgânicos tenham mais nutrientes – assim como o próprio alimento – e, portanto, tenham mais valor para a construção civil?
ML: Essa é uma boa pergunta. Não sei especificamente sobre milho e soja, mas temos muito coco geneticamente modificado em Gana, e eu esperaria uma composição química mais padronizada nas espécies híbridas do que nas orgânicas, com menor variação nos níveis de açúcares e lignina. E embora isso seja mais previsível em termos de produção, geralmente não se alcança o desempenho estrutural necessário, ou talvez não se encontre o tipo certo de açúcar para alimentar o micélio. Na verdade, nunca vi nenhuma pesquisa sobre isso, mas esperaria o mesmo nas indústrias do milho ou da soja. Na natureza, em condições climáticas mais severas e solo mais nutritivo, encontramos plantas mais fortes, então não é difícil imaginar que não conseguiremos obter muito valor estrutural em alimentos transgênicos cultivados em solo pobre.
RB: Sim, certamente não é difícil supor isso. Para concluir nossa conversa, você poderia falar sobre os principais desafios que esses produtos enfrentam hoje, o que os tem impedido de finalmente entrar no mercado?
ML: Uma das perguntas mais comuns que recebo é como esses materiais se comportam em contato com o fogo. Os produtos de isolamento de baixa densidade feitos de micélio têm excelente desempenho contra incêndio — quando queimam, criam uma camada externa que protege o núcleo contra as chamas. Eles também não liberam gases tóxicos como muitos outros produtos sintéticos. O desempenho contra água e umidade, por outro lado, pode ser melhorado com uma variedade de revestimentos e vernizes usados também em madeiras.
Acho que o maior problema é como arquitetos e designers integram esses materiais em seus edifícios. Vivemos por muito tempo em ambientes selados por materiais inertes — vidro, aço, concreto —, mas esses produtos de micélio precisam respirar, e se você impedir que eles entrem em contato com o ar, impedirá também que eles lidem com toda a umidade ou calor que eventualmente venham a absorver. Não estou romantizando a arquitetura vernacular, mas há muita inteligência em termos de compreender como seu telhado e suas fachadas ficam quentes, como a umidade muda de um lado para o outro do edifício e como toda essa umidade e calor podem ser liberados da arquitetura.
Na minha opinião, o maior problema é como projetamos com esses materiais e como planejamos o ciclo de vida da arquitetura. Ainda é caro produzi-los em comparação a alternativas convencionais, portanto, pensar em uma produção distribuída desses materiais, bem como no destino após seu uso, é algo crucial. Há muito espaço para inovação aí, e estou entusiasmada para trabalhar e colaborar com outros profissionais nisso — é um problema instigante para se lidar hoje em dia.
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